Marcello Antony: ‘Ninguém quer criança com HIV’ 6y5b4z
O ator fala do emocionante processo de adoção de seu primeiro filho, portador do vírus y2i19

Estava em uma entrevista outro dia e acabei comentando, muito rapidamente, que adotei um de meus filhos sabendo que era portador do gene do HIV. Isso repercutiu mal, de forma errada mesmo, como se eu estivesse expondo o Francisco. Nunca quis abrir o assunto antes, apesar da história já ter mais de duas décadas. Achei, porém, que tanto tempo depois havia chegado o momento. Meu filho fez 22 anos, está grande e maduro, e a ideia é justamente quebrar um tabu e incentivar mais gente a adotar, sem se importar com a condição da criança. A maioria busca o bebê perfeito, coisa que não existe. A mãe do meu filho era soropositiva e assim ele nasceu, embora nunca tenha desenvolvido a doença. A gestação foi toda bem acompanhada e não houve amamentação — tudo para preservar o Francisco. A ciência evoluiu e, hoje, é mais fácil verificar as chances de um recém-nascido seguir com o vírus no organismo. São três testes. Quando ele veio para casa, havia ado por apenas um. Não tínhamos ideia do que nos aguardava.
Jamais falei da força espiritual de nosso encontro, como se fosse algo de vidas adas. Do lado mais psicanalítico, me projetei nele, uma criança desamparada precisando de acolhimento, sentimento que eu próprio trato na terapia. Na época, era casado com a Mônica Torres (atriz), e tínhamos incompatibilidade sanguínea para gerar bebês. Cinco gestações não foram adiante, uma delas com três meses. Perdia, engravidava, perdia de novo, e a gente tentava. Fizemos de tudo para ter um bebê, recorremos a várias técnicas, mas não foi possível. Decidimos então partir para a adoção. Estava na novela Mulheres Apaixonadas, na Globo, quando começamos a visitar orfanatos. E amos pelo curso da Vara da Infância e da Juventude no Rio para entrar legalmente com o pedido.
Ao fim de seis meses, Mônica visitou um orfanato e gostou de um garoto. Falou: “Olha, tem um menino lá que você deveria conhecer”. Ela me disse que ele apresentava alguns probleminhas, sempre chorava e tal, mas o olho dele era verde e ninguém o queria porque a mãe era soropositiva. Resolvi ir lá para ver. Cheguei de noite e, como estava no auge da exposição na TV, havia um esquema preparado para não causar tumulto. Precisaram fazer de tudo para que Francisco não dormisse, à minha espera. Ficava pensando o que faria caso decidisse não adotar a criança, uma situação complicada. Só que, ao bater os olhos no menino, me veio algo que não tem explicação, do tipo: “Cara, onde você estava esse tempo todo?”. Me vi encantado com aqueles olhos verdes e sabia que não poderia deixá-lo para trás. Aí brinquei: “Onde devo ? Posso levar para casa?”. A mulher do orfanato assentiu, sugerindo que o levasse para ar um fim de semana comigo. “Na segunda você traz ele de volta”, ela disse.
Como era uma criança com o gene do HIV, ninguém a queria. O desembargador agilizou a papelada e, em um mês, já era meu filho legítimo. Rápido demais, dadas as circunstâncias. Um processo desses costuma levar anos. Nos primeiros dias, o médico chegou a me indagar se eu tinha certeza, se não era o caso de virar tutor dele. Eu poderia me arrepender depois, argumentou. O que ele não entendeu é que nada disso importava — Francisco já era meu filho. E o tema nunca foi tabu lá em casa. Hoje moramos em Lisboa, onde ele é auxiliar de cozinha numa rede de comida natureba e está prestes a virar o chefe de todo o staff. Dos meus cinco filhos e filhas, é o único que mora sozinho. Está com ótima saúde e vem criando casca, descobrindo sua independência. Um pouco mais para a frente, planeja se mudar para a Itália, estudar em uma escola de gastronomia e se transformar em um grande chef. Francisco vai longe na vida.
Marcello Antony em depoimento a Valmir Moratelli
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947